terça-feira, 2 de agosto de 2011

Mãe, Pai, Sou Nerd

Esse é um texto antigo que eu achei aqui na bagunça, então publiquei na integra. Talvez faça uma edição revisada.

Pai e mãe na sala.

MAE: Calma, Astolfo. Isso tudo pode ser um grande engano.

PAI: Vc sabe que nao, Helena.

Entra o filho na sala.

FILHO: Pai, mae, dae.. Que tem pro jantar?

Os pais ficam mudos. A mae, aflita. O pai, cara amarrada, sentado no sofa. Ambos olhando pro filho.

FILHO: Credo, que caras sao essas?

PAI: Jorge Eduardo, um amigo seu ligou. Era o "Tarrasque", ou algo assim.

O filho arregala os olhos.

PAI: Ele disse pra vc levar "coca-cola de 2 litros e cheetos extras" hoje a noite, que "a coisa vai durar".

FILHO: Ah, sim, pois eh.. o Tarrasque ligou, ne? E ele disse.. isso... Sabe o q eh pai, a gente vai numa noitada na Continental hoje e..

PAI, ironico: E vao levar coca de 2 litros e cheetos?

MAE: Calma, Astolfo.[tomando a palavra] Jorginho, seu pai entrou no seu quarto e mexeu nas suas coisas. Ele achou isto.

A mae joga um objeto pequeno na mesa. Um cubo. Numerado. Azul.

MAE, continuando: Eu disse pra ele que era do Luquinhas, que era do Banco Imobiliario dele, ou algo assim. E eh isso mesmo, nao, filho? Esse dado eh do Luquinhas, nao?

FILHO, respirando fundo: Nao, mae. Esse dado eh meu. Eu to com um monte desses na minha mochila, agora.

MAE: E pra que vc usa dados, filho?

FILHO: Pra jogar RPG.

Silencio. Tensao.

PAI: O que? Mais o que foi que voce disse, rapaz? Anda, responde, Jorge Eduardo!

FILHO, com medo: Isso que o senhor ouviu, pai. Eu sou RPGista.

MAE: Meu filho! Desde quando? Des-de quan-do voce sai com essas pessoas, o tal do Tarrasque, pra fazer essas coias?

FILHO: Desde a 8a serie.

PAI: Jorge Eduardo, preste atencao. Outro dia eu liguei pro seu colegio. Estava preocupado porque vc ficava muito em casa. Sabe o q eles disseram? Que vc tira as melhores notas da sala, mas que as vezes eh meio "recluso".

MAE: Ouça seu pai, filho. Nos te demos um Tempra 4 portas pra vc sair por ai, com aquelas garotas faceis, ir em boates caras da moda, cheirar cocaina, viver uma adolescencia sem sentido nem massa encefalica, como um jovem normal. E como eh que vc nos retribui isso? Passando as noites
de sexta em casa, se divertindo aprendendo Algebra, saindo todo sabado pra jogar RPG e dizendo que ia ficar com a Aninha.

FILHO, voz tremula: Mas eu estava com a Aninha. Ela tbm joga. Com uma cleriga meio-elfa level 16.

PAI: O que, a Aninha? Olha o q vc esta falando, rapaz! A Aninha eh filha do Vitor, meu colega na Aeronautica. Tenente Vitor. Conheco o pai dela desde o Colegio Militar. Um homem de pura integridade.

MAE: Vc sai praqueles.. pra-que-les.. lugares de Nerd?

FILHO: Bom.. vou falar duma vez... Lembra quando eu pedia uma grana pra ir pro Shopping, ir comer MacTrashes na praça de intoxicação? Eu na verdade ia pra Loja de RPG, jogar com meu grupo. Po,
entendam, eh uma campanha que ja faz 2 anos que...

PAI: E todo dinheiro que eu pus na tua mao pra vc comprar roupas de grife, pagar o Jiu-Jitsu, alimentar seu PitBull, pagar a mensalidade carissima do club, o celular digital?

FILHO: D&D 3a edicao, Mago a Ascencao, GURPS Fantasy,um monte de carta de magic e peça de mage knight, alem dum monte de dados.

PAI: Nao, nao! Eh demais pra mim.

MAE: Calma, Astolfo. Olha a ponte de safena. Calma.

FILHO, explodindo em lagrimas: Que droga, pessoal. Eu sou assim. Eu sou Nerd. Faz parte da minha natureza. Eu nao pedi pra nascer assim. Um dia, na 6a serie, eu percebi que gostava mais de ficar estudando do que de chutar uma bola com um monte de homens suados ao redor. Eh algo, sei la,
meu. Eh minha natureza.

O pai arremesa a mao espalmada e derruba o filho com um vigoroso tapa nas fuças.

MAE: Astolfo, nao! [diz a mae, lançando-se no filho para um abraço] Ele ainda eh nosso filho.

PAI: Filho meu ele nao eh. Nao mais. Va pro seu quarto, moleque, enquanto vc ainda tem um. E saiba que se vc ainda quiser morar nesta casa, vai ter que largar essas nerdices, e começar a tirar notas baixas, ficar de recuperação, engravidar alguem, espancar caras em bares, viver
como um filho meu tem que viver.

Jorge Eduardo levanta-se, cabeça baixa, e assim vai pro seu quarto, sozinho.

MAE, virando-se pro marido: Isso eh coisa da idade. Depois passa. Ele nao faz nem noção do que esta fazendo.

O pai em silencio.

MAE: Deve ser ma companhia. Esse tal de Tarrasque.. Má influencia. Nosso filho eh um bom menino, Astolfo.

PAI: Vou por ele num colegio interno na Suiça. Um lugar bem linha dura, de disciplina fodida e opressora que o ensine a ser uma maquina acefala de obedecer ordens de superiores. Foi a melhor coisa que meu pai fez por mim e..

Nesse instante, Jorge Eduardo volta, mas irreconhecivel pra seus pais, que ficam de queixos caidos. Ele usava uma camiseta de "Trevas", um bone escrito "Vc sabe a derivada de integral de 'x' a quarta? Me pergunte", carregava livros de RPG misturados com romances europeus do seculo XIX e
poemas de William Blake. Na mochila via-se livros escolares socados sem jeito, em meio a uma infinidade de papeis e lapis. Tenis velho, surrado, cadarços soltos, calça jeans barata, camiseta desbotada. Irreconhecivel.

O pai apenas senta no sofa e fica imovel, vendo aquilo.


FILHO: Pai, mae, eu amo voces, e espero que um dia vcs me entendam, e me aceitem como sou.

Dizendo isso, abre a porta da rua e sai. Nao foi de Tempra. Prefiriu pegar um busao.

--------------

HELENA: Eu nunca.. nunca pensei que viria a um lugar como este. Estou aqui pelo meu filho. Este eh ele [mostra uma foto de Jorge Eduardo, numa festinha badalada, cercado de garotas faceis] Jorge Eduardo. Tem 16 anos e.. e.. joga RPG ha 3. Ele era um menino bom. Bom [começa a chorar]

COORDENADOR: Vc esta entre amigas, Helena. Todas aqui têm filhos no RPG.


Helena olha ao redor. Todas presentes, com seus penteados caríssimos, roupas copiadas da novela das 8, jóias que não eram bijuterias, maquiagem pesada, algumas com poodles rosas a tiracolo e todas com bolsa de couro de jacaré. De repente, reconhece uma amiga, ao seu lado.
Lurdes, que lhe abraça, fraternalmente. Tbm tinha um filho no RPG.

HELENA, em pensamentos: "Onde foi que essa vadia comprou esse casaco de Minsk? Essa cadela!"